Faz sete anos que Ricardo Gomes renasceu. No fim de tarde de 28 de agosto de 2011, um acidente vascular cerebral quase acabou com a vida do técnico, que, dois meses e meio antes, comandara o Vasco na última conquista de nível nacional do clube de São Januário – a Copa do Brasil de 2011.

Não foram poucas as dúvidas povoando o imaginário deste carioca, que completará 54 anos no próximo dia 13 de dezembro. Ricardo reaprendeu a falar e tinha dificuldades no caminhar quando voltou a trabalhar, três anos depois do AVC, como técnico, no Botafogo, clube pelo qual realça a gratidão. Passou também pelo São Paulo e pela Arábia Saudita, até ser convidado pelo Santos a assumir como diretor executivo, em junho deste ano. Ficou dois meses no cargo, antes de o inesperado novamente o surpreender, positivamente, com o convite para se tornar diretor técnico do Bordeaux, um dos históricos grandes do futebol francês – o time enfrenta o líder Paris Saint-Germain no próximo domingo, às 18h (de Brasília), encerrando a 15ª rodada doCampeonato Francês,com transmissão em Tempo Real do GloboEsporte.com.

“Eu estou só agradecendo! Aliás, eu só agradeço desde 2011”

Em entrevista exclusiva por vídeo, além de celebrar a recuperação, Ricardo Gomes relembrou sua recente passagem pelo Santos, o tratamento contra as sequelas do AVC, falou sobre os planos ambiciosos do clube francês, comprado no último dia 8 por um grupo de investidores americanos, e antecipou que vai em busca de dois reforços na janela de transferências de janeiro. Também revelou o sonho de ser avô, analisou o momento do futebol francês e a ambição de, a médio prazo, concretizar o projeto de concorrer com o líder Paris Saint-Germain para tornar o Bordeaux um clube de nível europeu no prazo de três anos.

“Eu sou grato eternamente ao Botafogo”

 

Ricardo Gomes, quatro anos após o AVC, a gratidão ao Botafogo por tê-lo contratado — Foto: Vitor Silva / SSPress

Ricardo Gomes, quatro anos após o AVC, a gratidão ao Botafogo por tê-lo contratado — Foto: Vitor Silva / SSPress

Confira abaixo a entrevista:

GloboEsporte.com: Como aconteceu o convite para trabalhar no Bordeaux?

RICARDO GOMES: Surpresa, mesmo para mim. Havia uma negociação entre americanos e franceses para a mudança do controle do clube. Eu ainda estava como diretor no Santos, quando me chamaram para uma reunião, em São Paulo, para discutir a possibilidade da minha volta (a Bordeaux). Eles estavam pensando no (francês) Thierry Henry, mas não aconteceu. Eles tinham outros nomes. Conversaram comigo. O presidente, duas semanas depois, me ligou para saber se eu conseguiria me liberar do Santos. Assim foi. Eu cheguei já com o início do campeonato. Eram quatro rodadas. Muito contente por estar aqui, de volta. Nos dois anos anteriores, 2005 a 2007, foi marcante para mim e para eles também. E, agora, com os americanos, nova gestão, estamos tentando fazer o melhor para o Bordeaux.

Pelos dois anos que passei aqui, desde a minha chegada em 2005, não mudou muita coisa, não. O staff é quase o mesmo. Nós temos aqui o Centro de Treinamento e também a parte administrativa. É tudo perto. Passo o meu dia aqui. Tenho o treino e, depois, a parte administrativa para tentar fazer uma evolução de gestão no clube. Gestão esportiva, né? A base no Bordeaux hoje é muito importante. A categoria de base. São pessoas qualificadas, como o (Patrick) Battiston, um dos melhores zagueiros das Copas em que ele atuou (1978, 1982 e 1986), presença marcante aqui no Bordeaux; e o Marius Trésor, um outro monstro da zaga (Copas de 1978 e 1982). Tudo é muito organizado. É um mercado, no futebol de hoje, em que você precisa ter ótima formação, que é o caso daqui, mas (com o foco) de que esses jogadores formados aqui fiquem aqui. É a mesma situação que o Santos atravessa. E todos os grandes clubes brasileiros. Formar bem, mas segurar o jogador. Além dos treinos, é o nosso foco: reencontrar a maneira de segurar o jogador por mais tempo no clube em que foi formado.

Ricardo Gomes, em sua sala de trabalho no Girondins de Bordeaux — Foto: Reprodução/Sportv

Ricardo Gomes, em sua sala de trabalho no Girondins de Bordeaux — Foto: Reprodução/Sportv

Há um domínio expressivo e desigual do Paris Saint-Germain no cenário doméstico francês. Você pensa que pode prejudicar a evolução do futebol local e tirar atrativos do Campeonato Francês?

Se não (mudar), vamos passar para um esporte de ricos. Tudo bem, o mecenas sempre existiu, mas você tem que encontrar o meio-termo de não deixar essa diferença se acentuar. Só a Liga dos Campeões estar com os melhores jogadores? Tem que ter uma coisa mais razoável.

O domínio do Paris Saint-Germain, com 100% de aproveitamento em 14 rodadas disputadas e 15 pontos de vantagem sobre o vice-líder Lyon, com 2/3 do Campeonato Francês ainda por jogar, prejudica o interesse do torcedor pela competição?

Estamos tentando fazer diferente. Mas não tem ainda a solução. Aconteceu isso com o Lyon, com Juninho Pernambucano, Caçapa, Cris, que ficou sete anos com essa supremacia; aconteceu com o (Olympique de) Marselha, nos anos 80 e 90; depois, o Paris Saint-Germain. É um pouco a liga francesa: tem sempre um clube que faz a diferença durante muitos anos. Temos que quebrar essa diferença. É mais difícil hoje, pela quantidade financeira e a qualidade dos jogadores do Paris. Mas é muito trabalho. A solução é trabalho”.

O Bordeaux acabou de ser vendido para um grupo de acionistas americanos. O objetivo é competir com Paris Saint-Germain?

(os americanos) Foram apresentados no último dia 8 (de novembro). Têm certamente um planejamento anterior. Isso foi discutido durante um ano. Vão executar. Não é uma mudança do dia para a noite. Mas a ideia deles é isso: em dois, três anos, fazer do Bordeaux um grande clube europeu.

Fez 7 anos do grave acidente vascular cerebral que você sofreu durante um Flamengo x Vasco, pelo Campeonato Brasileiro-2011. Dois meses antes, você havia sido campeão da Copa do Brasil pelo Vasco e o time fazia ótima campanha na Série A, em que acabaria vice-campeão. Esperava voltar ao futebol como diretor técnico, agora, no futebol francês?

Na verdade, (foi) graças ao Botafogo, porque eu mesmo tinha certa dúvida, tinha algumas dúvidas sobre a minha volta. O presidente do Botafogo (Carlos Eduardo Pereira) acreditou na minha capacidade. Mesmo com um vocabulário menor, com dificuldades de andar. Aconteceu, e eu sou grato eternamente ao Botafogo. Isso foi marcante, em 2015. A partir daí, saí do Botafogo para o São Paulo, depois Arábia Saudita, voltei para o Santos como diretor esportivo. Eu também não esperava. E voltei para o Bordeaux. Eu estou só agradecendo! Aliás, eu só agradeço desde 2011! Estou só agradecendo!”

Cristóvão Borges o substituiu no Vasco, em 2011, e, depois o auxiliou em seu retorno. Você ainda mantém contato com ele?

Sim, nos falamos sempre. Somos amigos. A grande maioria dos caras com quem já trabalhei… Conheço o Cristóvão desde quando eu era amador no Fluminense, e ele já profissional. Guardamos amizade. Agora, com o Jair Ventura e toda a comissão técnica do Botafogo. Com respeito, você consegue trabalhar bem. Consequentemente, o Cristóvão era o meu auxiliar, e, depois do meu acidente, ele assumiu, com competência. O Vasco perdeu (o título) na última rodada para o Corinthians. No Brasil, vocês sabem melhor que eu, você tem que provar a cada dia. Nos últimos dois clubes, ele não teve muito sucesso, mas está esperando, com certeza, uma boa oportunidade em 2019. Vai acontecer. Ele tem conhecimento, tem capacidade”.

Há uma polêmica, desde a sua chegada ao Bordeaux, que envolve a questão de não ter o diploma e a licença válidos para trabalhar no futebol francês. Poderia dar a sua versão?

Há a questão da reciclagem. Quando você não tem o diploma completo, você vai passando, vai fazendo a reciclagem. No meu caso, depois do acidente em 2011, eu não fiz mais nada (nesse sentido). A lei também mudou. Você precisa estar com o diploma completo para (poder) ficar na frente do banco (de reservas). Na verdade, o treinador (oficial) é o Éric Bedouet. É um cara que trabalhou comigo há muito tempo. Nós temos, assim, um bom relacionamento. Não tem problema. Depois, tem a comunicação. É importante ter uma boa comunicação com o jogador. E isso não é possível aqui (pela restrição de trabalho). Mas eu sabia desse impedimento quando cheguei aqui. Na verdade, é um impedimento.

Pensa em fazer a reciclagem para solucionar esse impedimento?

Isso está sendo discutido. Foi feito um requerimento, que não foi aceito. Haverá o desenrolar. Os novos acionistas estão vendo qual a melhor maneira para a gente encontrar uma solução de continuidade.

Seu contrato é de quanto tempo?

Um ano.

Ricardo Gomes, em sua sala de trabalho no Girondins de Bordeaux — Foto: Reprodução/Sportv

Ricardo Gomes, em sua sala de trabalho no Girondins de Bordeaux — Foto: Reprodução/Sportv

Você tem receio que não venha a ser mantido no posto de diretor técnico ou de treinador pelos novos acionistas?

Pelas declarações que foram dadas, eles querem resultado, não querem trocar. Eu acho que eles querem resultado. E depende do resultado. Independente do americano, do francês, do chinês, o brasileiro, o futebol, hoje em dia, é uma dinâmica em que você precisa de resultados econômicos e esportivos. No meu caso, o resultado mais importante é o esportivo. Então, se não dá para ganhar sempre, (tem de) ganhar a maioria dos jogos.

O que os novos acionistas americanos do Bordeaux esperam de você?

“Estamos começando a trabalhar. Tem muita coisa para acontecer. Os planos ainda estão entre eles (acionistas). (temos que) Esperar que divulguem a curto prazo. Hoje em dia, não é diferente do Brasil. Certamente, querem resultados esportivo, o mais importante, e financeiro. E que isso aconteça não a curto prazo, mas a médio prazo.

Quando você assumiu, o Bordeaux era o penúltimo colocado entre os 20 clubes da Ligue 1, à frente apenas do Guingamp. Agora, está em 12º. O que foi preciso mudar e o que ainda precisa ser mudado para a campanha melhorar, já que está 25 pontos atrás do líder Paris Saint-Germain, mas apenas dez do vice-líder Lyon?

Chegamos a alcançar o oitavo lugar; depois, caímos, e hoje estamos em 12º. A mudança (de técnico) tem aquele choque psicológico no jogador. Depois, (o atleta) volta um pouco a cometer os mesmos erros. Então, estamos tentando ratificar (esse trabalho de melhoria)”.

Como é a sua relação com o Éric Bedouet?

É o treinador. Nós nos conhecemos aqui, em 2005. Trabalhamos da melhor forma. E, nessa minha volta, as famílias são amigas. É o trabalho que importa. Apesar dessa amizade com ele e com a maioria (das pessoas) do clube, precisamos de resultados. Tudo é isso é muito bonito, mas a bola tem que entrar.

A campanha do Bordeaux é ruim na Liga Europa…

Se você pegar o histórico do Bordeaux, nos últimos anos, e dos clubes franceses, não é muito diferente. Eu aposto mesmo numa boa classificação nessa primeira temporada do Campeonato Francês.

Ricardo Gomes, em entrevista coletiva no Bordeaux — Foto: Divulgação / Bordeaux

Ricardo Gomes, em entrevista coletiva no Bordeaux — Foto: Divulgação / Bordeaux

Como tem sido a relação com a imprensa francesa e por que demorou a dar entrevistas?

Já falei com o jornal “Sud Ouest”, aqui de Bordeaux, e com o (diário esportivo) “L´Équipe”, também. As coisas ficaram mais claras. O problema é quando você tem dúvidas. Na dúvida, o melhor é não falar.

Levando-se em conta a campanha do Bordeaux nesses primeiros 14 jogos, qual o objetivo de classificação do clube ao final do campeonato?

A primeira parte da tabela de classificação. Você tem aí três clubes: Paris, Lyon e Olympique de Marselha, e mais o Mônaco, que teve alguns problemas de lesões e está muito mal classificado, mas tem um bom elenco. Se conseguirmos entre o quinto e sexto lugares, seria bem interessante.

O presidente do Santos declarou que só aceitaria a rescisão de seu contrato se houvesse o pagamento de uma multa contratual. Você pagou para deixar o clube e ir para o Bordeaux?

Tinha uma multa a ser paga, e estávamos negociando. O acordo foi fechado este mês. Estava chorando (sorri, sobre um desconto no valor). O valor fica entre as partes. O contrato (com o Santos) era até junho de 2019.

Ricardo Gomes e José Carlos Peres, presidente do Santos: acordo fechado sobre a multa — Foto: Divulgação Santos FC

Ricardo Gomes e José Carlos Peres, presidente do Santos: acordo fechado sobre a multa — Foto: Divulgação Santos FC

Por que não fez um pronunciamento ou deu uma entrevista ao deixar o Santos?

Havia a troca de técnico (do Bordeaux) no meio da temporada, que é complicada. Troca de acionista. É muita coisa, (e pode) para falar besteira. O melhor é virar defesa e ficar na retranca (até resolver).

Você tem acompanhado o Santos ou o futebol brasileiro depois de sua chegada ao Bordeaux?

Estou muito envolvido (com o Bordeaux). Às vezes, vejo os resultados, a internet, alguns lances, mas acompanhando mesmo, não.

O Bordeaux tem história de sucesso com jogadores brasileiros: Jussiê, Márcio Santos, Wendel, Mariano e, mais recentemente, Malcom, hoje, no Barcelona. Você pensa em reforços brasileiros para a janela de transferência em janeiro próximo?

Claro que o treinador quer os melhores jogadores, não só os brasileiros. Tem essa mudança de gestão do Bordeaux. Vamos buscar reforçar esse time, não só com brasileiros. É claro que eu trouxe quatro, cinco brasileiros para o Bordeaux (na passagem de 2005 a 2007), que ficaram durante anos. Não é só buscar o bom jogador brasileiro. É buscar que ele fique um pouco mais de tempo no Bordeaux, como o bom talento da base. Com a estrutura, é mais fácil. O jogador chega num ano e no outro vai embora, isso não é bom. É fácil falar, mas é difícil manter um time por dois ou três anos, mudando muito pouco.

Você busca reforços para que posições?

(sorrindo): Essa (pergunta), eu vou passar. Essa, não dá. São duas posições, mas eu não vou citar. Mais tarde, pode ser.

Nas redes sociais e nos grupos de torcedores do Bordeaux, temos visto muitas cobranças pelas contratações de um volante e de um centroavante. A pista está correta?

(sorrindo): Você está acompanhando bem. Mas (ri e faz uma pausa) … Sem pista. Essa, eu fiquei devendo. Vou ficar algumas semanas com essa dívida.

Você mantém contato com seus ex-companheiros de Santos?

É muito mais contato de WhatsApp, de desejar sorte no próximo jogo. Rede social é muito legal, mas perde um pouco de tempo. É preciso cada um estar no seu canto, ligado no seu trabalho. Por isso, eu leio tudo: imprensa francesa, portuguesa, brasileira. Fico sabendo por vocês. Mas não fico ligando para o Cuca, para o Dorival, para o Cristóvão, para perguntar sobre campanha. Só para saber das pessoas, mesmo.

Como tem sido a convivência com os torcedores nessa volta a Bordeaux? É uma região icônica, pela produção dos vinhos, pela paixão pelo futebol… Como é a sua relação com os torcedores e a cidade?

Eu tive sorte com essa minha volta. Se fosse Paris, Mônaco, eu já estive no Paris duas vezes. Eu gosto muito do Brasil, mas gosto bastante da França. Eu tenho uma boa relação na cidade. Muito bem recebido pela comunidade e a torcida de Bordeaux. Muito legal comigo. Esse negócio de confiança no treinador, isso não existe. Eles querem é bola na rede, resultado. São exigentes, muito exigentes. Isso é muito bom. Você procura fazer o melhor a cada dia.

Ricardo Gomes, em sua sala de trabalho no Girondins de Bordeaux — Foto: Reprodução/Sportv

Ricardo Gomes, em sua sala de trabalho no Girondins de Bordeaux — Foto: Reprodução/Sportv

Falta alguma coisa que você gostaria de realizar desde a sua volta e da recuperação do acidente?

O que está faltando é o seguinte: eu conseguir melhorar o meu lado direito, apesar de eu nunca ter utilizado o lado direito para jogar. Mas eu falo de um apoio melhor para poder jogar uma bola. Mas (jogar) entre amigos (rindo).

Seus filhos o acompanham nessa jornada em Bordeaux?

Meus filhos já estão grandes. Eu estou mais é esperando um neto e torcendo para que isso aconteça. Meus filhos têm vida própria. Ana Carolina tem 27 anos e o Diego, 31. Eles moraram aqui, entre 2005 e 2007. Agora, é uma boa ponte aérea.

Reportagem de Globoesportes.com

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