Paulo Roberto de Freitas, o Bebeto, faleceu ontem aos 68 anos. A cobertura da imprensa e as manifestações de esportistas no Brasil e no mundo dão bem a dimensão da importância de Bebeto para o esporte e para o vôlei em especial. Vamos então tratar aqui do Bebeto presidente do Botafogo e o que ele nos legou.

Sobrinho de João Saldanha e primo de Heleno de Freitas, Bebeto herdou do tio a visão de um Botafogo moderno e profissional, e do primo a paixão irascível com que sempre tratou tudo. De ambos, puxou a paixão pelo Botafogo e a valentia que o fazia encarar qualquer briga, seja em campo contra a polícia pernambucana, seja fora dele contra dirigentes e federações.

Seu mandato no Botafogo refletiu sua personalidade e sua visão. A luta inglória para profissionalizar o clube, a forte oposição interna e externa, as explosões de raiva e o estilo passional.

A eleição de 2002

O instável Botafogo da gestão José Luiz Rolim (1997–1999) desabou de vez na gestão Mauro Ney Palmeiro (2000–2002). Sem títulos importantes nem grandes contratações, o Botafogo endividou-se tanto ou mais que seus rivais, que, no período, gastaram o que não tinham em craques e títulos. O flerte dos últimos anos com o rebaixamento parecia que finalmente viria a se concretizar em 2002, ano que completavam-se dez anos do ciclo de Carlos Augusto Montenegro (1994–1996) como principal líder do clube, ainda que oficialmente fora do poder.

Neste contexto, seria natural que o candidato alinhado à situação sofresse ataques na campanha eleitoral. Não foi o que aconteceu. O outsider Bebeto de Freitas era o candidato mais atacado. Nome respeitado do esporte, trazia para o clube sua credibilidade, o que por outro lado ameaçava a tradicional oligarquia da sede. E entre o clube e seus privilégios, essas pessoas não hesitam em optar por si mesmas.

1º Mandato (2003–2005)

Rebaixado para a segunda divisão, salários atrasados, computadores com informações do clube desaparecidos. Na série B daquele ano, apenas dois clubes subiriam, e o Botafogo teria a companhia do Palmeiras, além de Sport e outras tradicionais equipes. O Palmeiras recorreu à sua categoria de base, em que despontava o jovem Vagner Love. O Botafogo nem isso tinha. Precisava de praticamente um elenco inteiro.

Esse foi o clube herdado por Bebeto, numa crise sem precedentes, possivelmente a maior da história do Botafogo. O normal numa situação de crise extrema seria, se não a união de todos, ao menos a disposição de ajudar ou de não atrapalhar. Não foi o caso do Botafogo. Bebeto já assumiu com a forte e destrutiva oposição que lhe acompanharia por todo o período.

Sem virada de mesa

 

O futebol brasileiro da época ainda se recusava a aceitar clubes grandes disputando a segunda divisão, vide o ocorrido com um certo clube entre 1996 e 2000. O presidente do Palmeiras queria a virada de mesa, presidentes de outros clubes e federações também. Bebeto de Freitas foi contra: “o Botafogo caiu no campo e vai subir no campo”. Daí em diante, não houve mais mudanças de regulamento para salvar clubes de rebaixamento. Quem cai, joga a segunda divisão e sobe no campo, seguindo o exemplo do Botafogo de Bebeto.

Mas era preciso montar um time em meio ao caos. Com sua credibilidade – naquele momento maior do que a do clube -, Bebeto trouxe Levir Culpi, então respeitado treinador que, por sua vez, trouxe Valdo, veterano jogador de belíssima carreira internacional. Os dois foram os pilares do trabalho de campo, que marcaria também a chegada de um jovem goleiro chamado Jefferson.

Infraestrutura

Bebeto de Freitas precisava prover o Botafogo de alguma estrutura, mínima que fosse, para trabalhar. Atraiu parceiros para fazer de Caio Martins o estádio único do clube na série B, tornando-o rentável e recusando a pressão para levar os jogos finais para o Maracanã, o que seria quebra de contrato para os parceiros que investiram no clube e ruim para o time, já habituado a jogar no campo de Niterói.

Posteriormente, com o Maracanã fechado, fez a funcional Arena da Ilha, em parceria com a Petrobras e outro clube.

Com o apoio de Manoel Renha, também novo na política do clube, fez o CT João Saldanha, na sede de General Severiano. Com isso o time pôde trabalhar em tempo integral e economizar com hospedagem.

Ainda no primeiro mandato, começou a trabalhar visando a aquisição do Engenhão, agora Nilton Santos, que estava sendo construído pela prefeitura do Rio de Janeiro, e que hoje é um ativo fundamental para o Botafogo. Bebeto, naquele momento, teve a visão da enorme importância de ter um estádio e da oportunidade que surgia. Esta visão faltou aos demais clubes e ainda hoje falta a muita gente dentro do Botafogo.

Dívidas

O Botafogo, como de hábito, estava afundado em dívidas, o que significava que qualquer receita poderia ser alvo de penhora, inviabilizando o dia-a-dia. Para equacionar as dívidas trabalhistas, Bebeto repetiu no Rio o que já havia sido feito em Minas Gerais: o Ato Trabalhista. Ele consistia num acordo com o TRT local para pagar um valor mensal que vai abatendo a dívida com os credores, organizados numa fila.

Para as dívidas fiscais, Bebeto foi importante nas articulações em Brasília pela criação da Time Mania que, em linhas gerais, repetia com a dívida fiscal o mesmo sistema do Ato para as trabalhistas.

Tais ações vieram a beneficiar todos os demais clubes, que também aderiram a elas.

Bebeto de Freitas era o único nome do esporte a integrar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, criado em 2003 pelo governo federal. Conseguiu o patrocínio da Petrobras, fundamental para as finanças do primeiro mandato.

Sócio Torcedor

A série B também registrou um fato notável: a torcida abraçou o clube por meio do projeto de sócio torcedor, o Botafogo no Coração. Torcedores também compraram cadeiras no estádio Caio Martins como forma de apoiar financeiramente o clube.

Essa ajuda da torcida foi fundamental dentro e fora de campo para o sucesso da reconstrução do Botafogo como time e principalmente como clube.

Oposição

 
Faixa contra Bebeto de Freitas em Caio Martins

Curiosamente, essa gestão de reconstrução, em meio à maior crise já vivida pelo clube, recebeu oposição colérica como nunca vista nas gestões de destruição imediatamente anteriores. Ainda em 2003, já havia faixas de “fora Bebeto”, e muitos que ainda hoje estão no comando do clube eram na época opositores ferrenhos.

A gestão Bebeto recebeu a mais forte oposição já vista dentro do Botafogo. Mesmo assim, ele não recorria ao velho e desonesto expediente de acusar críticos de torcerem contra, como hoje vemos frequentemente acontecer.

2º Mandato (2006–2008)

Embora o Botafogo tenha sido campeão carioca em 2006, este não foi o fato mais marcante do segundo mandato. A prefeitura do Rio anunciou que o estádio olímpico seria concedido à iniciativa privada após os Jogos Panamericanos de 2007. E foi para isso que o Botafogo se preparou.

Estádio Nilton Santos

A criação da Companhia Botafogo e a necessária reforma estatutária foram processos que duraram longo tempo, com muita discussão interna. Quando da licitação, o Botafogo era o único clube preparado para participar dela, e a Companhia Botafogo obteve a concessão pelo período de vinte anos.

Bebeto de Freitas negociou com algumas empresas acordo para gestão profissional do estádio, mas não assinou com nenhuma. Caso o fizesse em seu último ano de mandato, amarraria seu sucessor a tal contrato. Esta negociação coube ao gestor seguinte.

A Companhia Botafogo

A Companhia Botafogo é uma SA pertencente ao clube Botafogo de Futebol e Regatas, que por sua vez é uma entidade sem fins lucrativos. Alguns contratos, dentre eles o do estádio Nilton Santos, estão no CNPJ da Cia. Botafogo.

A Cia. Botafogo entretanto é mais do que isso. Ela foi pensada na gestão Bebeto para profissionalizar a gestão do clube. Dentro dela haveria uma estrutura organizacional profissional, com cada setor administrado por um gestor contratado. Neste caso, entenda-se profissionalismo – palavra tão desgastada – como algo estrutural, e não o simples fato de pagar pessoas por uma atividade.

Infelizmente, até hoje a Cia. Botafogo continua sendo utilizada apenas como um CNPJ alternativo, não como a mudança de modelo de gestão originalmente idealizada.

Oposição externa

O segundo mandato também se caracterizou pelo agravamento das oposições externas à gestão de Bebeto. O Botafogo de Bebeto tinha um modesto centro de treinamento – e alguns clubes do Rio não possuíam um -, equacionou as dívidas fiscais e trabalhistas, obteve um estádio moderno e buscava dar saltos de gestão profissional.

Um desses movimentos era óbvio: o Botafogo decidira mandar todos os seus jogos, inclusive clássicos, em seu estádio, o Nilton Santos, cedendo aos rivais apenas os 10% regulamentares da carga de ingresso. Em 2008, primeiro ano de uso completo do estádio, o Botafogo mandou dois de seus três clássicos do Campeonato Brasileiro no Nilton Santos. No último, contra o clube da Gávea, um dirigente do rival apareceu com laudo de órgãos como Corpo de Bombeiros alegando não ser possível a realização de clássicos lá. Lembrando que o estádio foi inaugurado num clássico com torcida dividida e lotação máxima, sem nenhum problema.

Quando instituições do estado se curvam a interesses de determinados clubes de futebol contra outros, temos a sensação de que a luta pelo caminho correto é impossível de ser vencida. Deve ter sido essa sensação que assolou Bebeto após o verdadeiro massacre que o clube sofreu dentro e fora de campo por imprensa, federação, CBF, árbitros e, como vimos, até por instituições de estado.

Oposição interna

 

Em 2008, o Botafogo aprovou uma reforma estatutária que previa o fim dos conselheiros vitalícios. Os presidentes podiam nomear quantos beneméritos quisessem, com aprovação do Conselho Deliberativo (sempre controlado pelo presidente), e estes se tornavam conselheiros vitalícios. Não havia limite. A reforma limitava isso.

A partir de então, há limite de 60 membros do Corpo Permanente (conselheiros vitalícios). Novos beneméritos podem ser nomeados, como na farra ocorrida no ano passado, mas só entram para o Corpo Permanente quando um dos 60 falecer, e respeitando a ordem de nomeação.

Esta reforma provocou forte reação interna da oligarquia da sede, gerando mais desgastes a Bebeto de Freitas.

Abandono

Todos que conviveram com o dirigente Bebeto de Freitas confirmam sua personalidade difícil, de relacionamento complicado. Bebeto tinha explosões, brigava até com pessoas próximas. Isso foi deixando-o isolado, mesmo porque nunca foi ligado a grupos partidários. Nem mesmo ao antigo grupo MCR (atual Frente Alvinegra), sua base de apoio.

Com o tempo e o acúmulo de estresses e tensões, Bebeto chegou ao limite. Anunciou seu afastamento no primeiro semestre de 2008. Neste momento, o grupo de Carlos Augusto Montenegro já havia voltado a fazer parte da gestão e já tocava o futebol do Botafogo. São desse período as inacreditáveis contratações de Zárate e Escalada, feitas por Ricardo Rotenberg (nomeado benemérito no ano passado).

Bebeto abandonou também o processo eleitoral, não apoiando ninguém para seu sucessor. Daí surge o tal acordo que levaria ao poder Maurício Assumpção, bancado à época por pessoas que hoje comandam o clube, como Gustavo Noronha, atual VP de Futebol.

O Botafogo encerrou a era Bebeto conturbado como sempre, mas com grande legado deixado pelo presidente.

O legado

Resumindo, podemos dizer que Bebeto de Freitas pegou o Botafogo na maior crise de sua história. Com dívidas, na série B mais difícil já enfrentada por grandes clubes, sem informações, sem estrutura, sem time. Bebeto arregaçou as mangas e nos legou:

Time Mania: equacionamento das dívidas fiscais. Posteriormente foi feito o Profut, com objetivo semelhante.

Ato Trabalhista: equacionamento da dívid trabalhista.

Companhia Botafogo: idealizada para iniciar gestão profissional, hoje é usada para outros fins, mas continua tendo forte importância para a gestão do clube.

Estádio Nilton Santos: então o mais moderno do Brasil, é o principal legado estrutural de sua gestão e ativo fundamental para o futuro do Botafogo.

CT João Saldanha: solução de curto prazo que trouxe grandes benefícios ao Botafogo.

Sócio-torcedor: o primeiro projeto de sócio-torcedor foi um sucesso e ajudou muito o Botafogo na série B.

Note que os instrumentos que hoje mantém o Botafogo em condições de se sustentar são os mesmos criados na gestão Bebeto de Freitas. A missão dos gestores seguintes deveria ser de potencializar estes ativos, modernizar a gestão e atacar pontos não explorados pela gestão de Bebeto, que são principalmente o CT integrado e as categorias de base. O CT deve vir agora, graças a Manoel Renha, que passou a participar da gestão do Botafogo com Bebeto.

Saldo positivo

Apesar dos muitos problemas e eventuais erros de gestão cometidos nos seis anos de Bebeto de Freitas, jamais o Botafogo teve um antes e depois tão positivo. De um clube sem perspectivas a um clube com um salto significativo em estrutura, e preparado para mais passos adiante.

O Botafogo já desperdiçara janelas de oportunidade raras em sua história, como nos anos 1950 e 1960, e voltaria a desperdiçá-las a partir de 2009 (longo período do Maracanã fechado e Nilton Santos como estádio único). O período Bebeto foi o inverso disso, com o Botafogo sabendo agarrar as oportunidades surgidas, como o estádio Nilton Santos, e se estruturando para pensar em saltos maiores e evolução permanente.

Se a figura pessoal de Bebeto causava animosidades, conflitos e antipatias, o legado do presidente não pode ser negado senão por má fé ou interesses outros.

A Paulo Roberto de Freitas, cuja vida pessoal pagou alto preço pelos anos de Botafogo, que fez seu torcedor se sentir orgulhoso e representado, o nosso muito obrigado.

Texto original no site https://medium.com/botafogosemmedo

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