As finanças do Botafogo em 2017 (Foto: ÉPOCA)

O ex-presidente Carlos Eduardo Pereira deu uma declaração corajosa e, na mesma medida, calamitosa enquanto acabava de começar seu mandato como presidente botafoguense. Em 2015, disse o cartola em entrevista ao Premiere que o clube levaria não três, nem seis, mas oito anos até que sua situação financeira começasse a melhorar. O torcedor teve calafrios. Oito anos? Durante esse período, a equipe viveria sob restrições orçamentárias para não permitir que o quadro se agravasse ainda mais e a apequenasse de modo irreversível – as palavras que o dirigente usou foram literalmente essas. Passaram-se três anos. As restrições foram impostas, as finanças começaram a dar sinais de recuperação, e o cartola aparenta ter acertado na futurologia. Ainda é cedo e incerto para chegar a tal conclusão, mas o Botafogo parece precisar de pelo menos cinco anos para se ajeitar.

À altura daquela previsão, início de 2015, o ex-presidente Maurício Assumpção havia deixado um clube rebaixado à segunda divisão e estrangulado por cerca de R$ 850 milhões em dívidas. É provavelmente a pior condição que um time de futebol já viveu na história de todo o futebol brasileiro. A Série B faz com que as receitas despenquem, afinal que empresa quer patrocinar uma equipe derrotada e mal administrada, e que torcedor quer gastar dinheiro para ir ao estádio – ainda mais no caso do Botafogo, que passava pelo rebaixamento pela segunda vez em seu histórico. Daí se tem o contexto para a afirmação de Carlos Eduardo. Não havia possibilidade de recuperar economicamente um clube nessa situação. O novo presidente, então, começou a reestruturação administrativa e financeira baseado em certas premissas: austeridade nas despesas, novas receitas e renegociação de dívidas.

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Como falar de despesas gerais talvez não faça sentido para o torcedor, a austeridade pode ser medida a partir de um indicador fácil de entender: salário de jogador. O elenco que batera uma folha de pagamento anual de R$ 103 milhões em 2013, temporada que teve em campo o holandês Clarence Seedorf, a partir de 2014 teve seu custo com remunerações reduzido para R$ 42 milhões em 2015. Na segunda divisão, o investimento foi suficiente para que a equipe voltasse à elite em primeiro lugar. De volta ao Brasileirão em 2016, o cartola médio faria com que o custo voltasse àquele do ano retrasado, certo? Carlos Eduardo segurou as pontas com R$ 53 milhões. E o que é mais impressionante: o futebol correspondeu. O Botafogo fechou a temporada na 5ª colocação no Brasileiro e se credenciou a jogar a Libertadores. Eis um ponto fundamental da trajetória alvinegra em sua recuperação: se houvesse novo rebaixamento, a estabilidade política certamente teria se esvaído.

O torcedor botafoguense talvez olhe para a performance do time em 2017 com desgosto. Sem a mesma eficiência da temporada anterior, o time perdeu desempenho no final da competição nacional e fechou o ano na 10ª posição, sem conseguir a qualificação para a Libertadores. Isso com uma folha reajustada para cima, com R$ 69 milhões injetados nas remunerações do futebol. O fanático xinga até a mãe do presidente nas redes sociais, mas a queda de desempenho em relação à temporada anterior foi natural. Carlos Eduardo continuou a operar com contenção de gastos. Se por um lado o investimento era maior do que na temporada anterior, por outro ele era apenas o 12ª maior na comparação com os demais adversários. O futebol continuou a corresponder dentro de suas limitações orçamentárias.

Apesar da perda de eficiência esportiva, a temporada passada foi positiva na parte da reestruturação que andava mais devagar. A geração de receitas. O Botafogo foi beneficiado tanto em 2016 quanto em 2017 pelo recebimento de luvas de um novo contrato de televisão, válido entre 2019 e 2024. Todo mundo obteve essa receita extraordinária. Não dá para contar com ela. Mas os botafoguenses cresceram nas demais linhas de arrecadação. O departamento comercial e de marketing dobrou patrocínios para R$ 19 milhões. As bilheterias foram quase triplicadas e chegaram a R$ 21 milhões. O sócio torcedor triplicou de fato e bateu R$ 8 milhões. Não são valores que tornam o Botafogo num clube rico. Tampouco são valores comparáveis aos de clubes como Flamengo, Corinthians e Palmeiras, cujas receitas acirraram a desigualdade no futebol brasileiro como nunca antes. O ponto é que o Botafogo arrecadou mais e o fez de maneira saudável, com aumentos em mais de uma fonte.

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As finanças do Botafogo em 2017 (Foto: ÉPOCA)

Austeridade nos gastos aqui, aumento de receitas ali, a terceira parte desta reestruturação é a da renegociação de dívidas. É o ponto menos visível ao torcedor e mais complexo de ser compreendido, porque envolve o fluxo de caixa. Aqueles R$ 850 milhões em dívidas deixados por Assumpção em 2014 não são apenas um numerão para encabeçar ranking. Na prática, o Botafogo estava tão endividado que as consequências disso, penhoras e bloqueios de verbas por vias judiciais, faziam com que as receitas nem sequer chegassem ao caixa. O clube achava que receberia o pagamento do contrato de televisão ou de algum patrocinador, mas o dinheiro era tomado por credores por meio da Justiça e sumia antes que pudesse ser usado para quitar despesas. Não dá para fazer futebol assim. Os salários dos jogadores que estão no elenco atrasam, os atletas que talvez queiram vestir sua camisa desistem ao saber que não receberão.

Carlos Eduardo começou a amarrar as dívidas. No caso da fiscal, de impostos não pagos por administrações anteriores, a sua diretoria equacionou com a entrada no Profut. O programa instituído em 2015 pelo governo federal permitiu que os times de futebol alongassem o pagamento dessas dívidas em até 20 anos, de modo que, se as parcelas combinadas forem pagas em dia, o governo para de confiscar dinheiro e estrangular o fluxo de caixa. Deu certo? Deu. Mas isso resolveu só metade da dívida botafoguense. Outra parte grande e incômoda é trabalhista, oriunda de ações judiciais de ex-funcionários que levaram calotes. Esses processos acarretam penhoras. O clube faz um jogo lucrativo na Libertadores e vê parte da receita ser levada por um juiz para atender a demanda de tal credor. Neste caso, são muitos credores. É mais difícil de equacionar. O Botafogo só conseguiu aliviar a barra depois que entrou no Ato Trabalhista, uma espécie de fila de pessoas a quem o time deve dinheiro. O acordão fica com um percentual das receitas alvinegras, não tudo, e as pessoas vão sendo pagas conforme a fila anda.

O Botafogo é o líder ingrato do ranking de maiores dívidas do futebol brasileiro há muitos anos. E continua a ser. Aquele endividamento de R$ 850 milhões anos atrás foi reduzido para R$ 705 milhões em 2017. Uma quantia ainda altíssima, a maior do país. Mas a lista é o de menos. O que importa de verdade é o efeito que ela tem sobre o caixa do clube. Hoje, grosso modo, o Botafogo dedica 50% de suas receitas para o pagamento de dívidas. É um percentual trágico, se você parar para pensar. De uma receita recorrente de R$ 180 milhões, excluídas transferências de atletas e luvas de televisão, a diretoria botafoguense pode gastar apenas R$ 90 milhões para pagar salários de jogadores, bancar custos administrativos e sociais do clube e ainda fazer algum investimento em reforços. É um orçamento apertadíssimo. É, no entanto, em função das dívidas renegociadas e do desaperto do fluxo de caixa, um orçamento melhor do que aquele feito pela gestão de Carlos Eduardo em seu primeiro ano.

É neste ponto que fica importante a reflexão sobre a projeção feita pelo cartola lá atrás. A dedicar metade de suas receitas para o pagamento de dívidas, partindo do pressuposto que o Botafogo não será rebaixado e seu faturamento continuará a aumentar, devagar e sempre, de quantos anos o clube precisa para ser considerado saudável e competitivo? O Flamengo levou três temporadas com austeridade e responsabilidade até chegar a uma situação que permitisse investimentos, mas o Flamengo tinha menos dívidas e o dobro da receita botafoguense. É natural que a recuperação financeira do arquirrival dê resultados mais rápido. E o Botafogo? Se Carlos Eduardo estiver certo, além dos três anos de seu mandato, serão necessários mais cinco até que a virada aconteça. Nem mesmo o mandato seguinte, de seu aliado Nelson Mufarrej, de quem é aliado e vice-presidente, parece suficiente para chegar lá.

O grande desafio botafoguense nos anos a seguir é o de manter a cabeça no lugar. No futebol, a racionalidade frequentemente perde para a fantasia. No segundo semestre de 2017, assim que o time começou a perder pontos no Brasileiro e se afastou da classificação para a Libertadores, um grupo com cinco dezenas de vândalos arrombou o portão do estádio Nilton Santos e forçou o cancelamento do treino alvinegro. A torcida tende a ignorar a condição financeira, por desconhecimento ou teimosia, e fazer cobranças desproporcionais à realidade do clube. Comportamento que com alguma frequência se manifesta entre conselheiros e grupos políticos, esses dotados de algum poder para apoiar ou minar administrações. Mufarrej e Carlos Eduardo terão de conduzir a política nos bastidores para que a calmaria prevelaça mesmo quando o futebol não colaborar. O projeto Botafogo 2023 depende disso.

*Com infografia de Giovana Tarakdjian.

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